Para ir além da pauta de costumes e falso moralismo: o que realmente importa na disputa eleitoral?

(Foto: divulgação)

No momento atual da campanha eleitoral, a discussão política no dia a dia (da vida real e das redes sociais) entrou em um campo bastante raso, por indução da campanha bolsonarista, mas que a campanha petista e seus aliados, vacinados por 2018 (com as fake news que colaram, sobre mamadeiras, kit gay e companhia), precisam desmentir/responder.
Fale-se agora de satanistamo (falsamente atribuído a lula), maçonaria (uma resposta verdadeira sobre vinculação de Bolsonaro e seu time à Maçonaria, mas algo totalmente irrelevante, apenas evidenciando a contradição entre o fundamentalismo religioso professado e a prática pragmática do vale tudo pelo poder). Além disso, da parte de Bolsonaro, há um esforço para vincular-se aos valores pretensamente cristãos, atacando as pessoas LGBTQIA+ e seus direitos, o que ele e a direita reacionária chamam de ideologia de gênero, bem como utilizando temas como aborto, a difusão da mentira de que a esquerda brasileira irá perseguir os cristãos e fechar os templos (sem embasamento no programa de governo nem na prática de governos petistas ou de seus aliados), coroando com a ideia de converter valores religiosos em leis e programas de estado (contrariando o conceito de estado laico, garantido pela constituição).
É redundante, mas necessário, falar que os partidos de esquerda são favoráveis à total igualdade de direitos (alguns ainda não convertidos em lei ou incorporados à constituição, ou direitos estabelecidos, mas sob ataque constante da direita) e cientes da necessidade de compensar injustiças históricas praticadas contra diversos segmentos da população (negros, indígenas, mulheres, pessoas com deficiência, pobres, pessoas LGBTQIA+). Sobre religião, o posicionamento sempre foi de liberdade religiosa e tolerância (não apenas aos cristãos, mas também a todos os tipos de credo). É importante ressaltar que este posicionamento não é um monopólio da esquerda, e que é compartilhado até pela direita liberal. O estado laico é unanimidade, da esquerda à direta minimamente racional e civilizada, o que não impede que em alguns momentos, haja análise crítica (e necessária) à instrumentalização da fé das pessoas por alguns líderes religiosos como forma de dominação política e econômica.
Um segundo ponto que vem fortemente à pauta é o combate à corrupção (que até os anos 90 era agenda monopolizado pela esquerda – que ainda não havia chegado de forma mais consistente e recorrente à cargos relevantes do poder executivo). A partir dos governos Lula e do crescimento eleitoral da centro-esquerda nos anos 2000 (cidades, governos de estado e bancadas representativas no poder legislativo), o jogo se inverteu e os escândalos que eclodiram em governos de esquerda passaram a estigmatizar este campo político (com grande engajamento dos veículos de imprensa tradicional), ainda que parte significativa dos casos tenham sido protagonizada por “aliados” de direita (hoje chamados de centrão), e que grande parte da legislação que dá mais transparência à gestão pública, bem como ferramentas de combate à corrupção tenham sido aprovadas por iniciativa ou com apoio do governo e dos partidos do campo progressista (portal da transparência, lei de acesso à informação, bem como a prática de reconduzir procuradores que apresentaram denúncias “contra” o governo, além de instituir a lista tríplice, com forma de buscar mais isenção nas indicações e do status de ministério dado à Controladoria Geral da União). Não se trata de negacionismo: os progressistas precisam buscar fortalecer os mecanismos de controle para que políticos e empresários não utilizem o estado para conquistar vantagens econômicas e poder político em conluio (a prefeitura de São Paulo na gestão Haddad bem como o governo de Flávio Dino no Maranhão são excelentes exemplo de como avançar).
Contudo é fundamental ressaltar que estes temas são cortina de fumaça para a real disputa. Não é isto (costumes ou moralidade) que faz com que grande parte da população escolha votar em Lula e seus aliados ou em Bolsonaro e companhia.
A diferença se dá primordialmente no campo da economia (de forma mais ampla): um modelo (bolsonarista) professa um liberalismo ultrapassado, que defende encolher o estado (redução do orçamento para proteção social e sucateamento e privatização do máximo de serviços e empresas públicos) e focar as políticas públicas nos interesses dos grandes empresários e investidores (redução de direitos dos trabalhadores, redução de impostos para estes segmentos da sociedade). Na prática, uma parte desta agenda foi rasgada por limitações políticas (as privatizações, que são o grande objeto de desejo do setor privado, desagradam ao centrão, ao qual o governo Bolsonaro deve sua sobrevivência, e as política de proteção social foram retomadas abruptamente e de forma desorganizada, com o claro objetivo de turbinar a campanha à reeleição).
É importante ressaltar que além de rasgar a agenda liberal, o governo atual não se pautou pela meritocracia que tanto professa (privilegiou indicação de aliados políticos do centrão, e quadros ideológicos sem qualquer experiência ou competência: Damares, Moro, Fábio Faria, Ciro Nogueira, Milton Ribeiro, irmãos Weintraub, Pazuello, Sérgio Camargo e muitos outros) e notabilizou-se por escândalos de corrupção (seja no governo realmente, como nos ministérios da saúde e da educação, seja práticas suspeitas de Bolsonaro, sua esposa, ex-esposa e filhos – rachadinha, tráfico de influência, obstrução da justiça...).
Além disso, o Bolsonarismo destruiu as políticas de proteção ambiental e a estrutura dos órgãos de fiscalização (estimulando o crime: desmatamento ilegal, mineração ilegal e violência contra os ribeirinhos e povos indígenas), o que afasta investimentos e prejudica as relações econômicas do país.
Já a coalizão que apoia Lula apresenta um projeto que vai além da pauta da esquerda, e busca construir um modelo de crescimento direcionado pelo estado em parceria com o setor privado, que tem como diretrizes: investir em educação, ciência e tecnologia e infraestrutura, fortalecer o setor de agronegócio (com foco nos pequenos produtores, mas com apoio aos grandes produtores que atuam de forma sustentável), buscar fortalecer a indústria nacional para aumentar a participação nas cadeias produtivas globais por meio de exportação de bens de valor agregado, fomentando a economia criativa e a tendo a sustentabilidade como tema transversal.
Contudo, este processo de retomada da economia deve acontecer garantindo a distribuição de renda, seja por meio de programas como o Bolsa Família, ou a Renda Básica da Cidadania defendida há décadas pelo hoje deputado eleito Eduardo Suplicy, seja por meio da valorização do salário mínimo acima da inflação, de forma que os trabalhadores recebam o retorno devido da riqueza que geram, além do estimulo ao empreendedorismo e do investimento nas micro e pequenas empresas de forma imediata e por investimentos na educação como saída emancipadora.
Temas caros ao setor financeiro e à elite econômica fazem parte deste projeto também. É fundamental uma política fiscal responsável, com limites para o endividamento público, bem como combate à inflação (o que, aliás, o governo atual não consegue entregar). A grande divergência é que estes temas não são o foco, mas sim o meio para se chegar à justiça social. Não faz sentido um teto de gastos que impeça o estado de atuar em investimentos, educação e saúde, ou praticar uma política macroeconômica que leva à recessão e ao desemprego. Com isso, o modelo Lulista deve beneficiar também os mais ricos (que se organizam para ganharem em qualquer cenário, ainda que sejam mais alinhados com a direita), mas promover um Brasil mais solidário.
É inegável também que Bolsonaro se tornou, sem qualquer surpresa, uma ameaça à democracia no Brasil, seja pela adesão e ameaça constante dos militares, seja pelas afrontas e ameaças ao STF ( que pode ser criticado, mas não sabotado ou atacado), que agora corre o risco de ter o número de magistrados alterado para garantir a formação de maioria bolsonarista, seja pela compra do parlamento por meio do orçamento secreto, seja, ainda, pelo estimulo ao crime em áreas de proteção e reservas indígenas.
Por todos estes motivos é que tantas pessoas de linhas de pensamento diferentes ( FHC, Marina, Boulos, Cristovam Buarque, Armínio, Malan, Simone, entre outros) tomaram partido nesta disputa de forma firme e inequívoca.
Em suma: a ideia bolsonarista é usar a discussão de costumes para “passar” a boiada da economia e fragilizar as nossas instituições. É preciso estar atendo a este movimento, decidir conscientemente qual projeto é o melhor para a maioria da sociedade, como muitos já fizeram, e agir.

Octavio Carvalho – Jornalista

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